Reajustes
de até oito vezes nas mensalidades fazem com que estudantes de medicina,
beneficiados pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), não consigam mais
pagar o curso.
A
reportagem conversou com estudantes da Universidade Estácio de Sá, no Rio de
Janeiro, uma das poucas instituições privadas que oferecem curso de medicina no
país e que integra um dos maiores grupos de educação no Brasil. Há estudantes
que viram a contribuição que pagam por mês subir de cerca de R$ 400 para mais
de R$ 3 mil em apenas um semestre, durante a pandemia. Como o programa é
voltado para estudantes de baixa renda, com renda familiar por pessoa de até
três salários mínimos, as famílias dizem não ter condições de bancar esses
valores. Os casos aguardam julgamento na Justiça Federal do Rio de Janeiro.
Entre
esses estudantes, está Marta*, que começou a cursar medicina no segundo
semestre de 2019. “Consegui uma boa porcentagem de financiamento [acima de
90%]. Foi a oportunidade que eu tive de fazer o que eu sempre sonhei”. No
primeiro semestre do curso, pagou, por mês, R$ 430. Em 2020, no segundo
semestre de medicina, esse valor passou para R$ 3,4 mil por mês. A renda
familiar vem da mãe, que trabalha como balconista em uma farmácia e do pai,
motorista de aplicativo. “A situação era bem difícil e ainda veio a pandemia. O
trabalho deles diminuiu muito”, diz.
O
aumento foi muito acima do esperado e Marta conta que não houve nenhum tipo de
aviso ou justificativa. Eles procuraram a universidade e a Caixa Econômica
Federal, que opera o financiamento, e tentaram fazer um novo ajuste. “Comecei a
ficar com dívida, meu nome foi para o Serasa”. Ela conseguiu negociar e a
dívida foi parcelada em 18 vezes. Essas parcelas, no entanto, de acordo com a
estudante, somaram-se às mensalidades, elevando o valor para mais de R$ 4 mil
mensais. A família vendeu um terreno que tinha e conseguiu quitar o semestre.
No
segundo semestre de 2020, no entanto, os boletos começaram a chegar, o problema
voltou e o caso foi levado à Justiça. “É muito desgastante. Um sentimento de
não saber do seu futuro. Estar com o seu futuro e ao mesmo tempo não estar com
ele. Não tem nada certo para os próximos semestres. Acaba sendo desgastante também
para meus pais”, afirma. Sem quitar o semestre anterior, os estudantes têm
problemas para renovar o financiamento e, consequentemente, para fazer a
matrícula e se inscrever nas disciplinas.
A
mãe de Felipe é dona de casa e o pai, pedreiro. “Para mim, é muito importante
terminar os estudos. Eu fiz o meu ensino fundamental e médio em escola pública.
Foi uma conquista minha, não fiz cursinho porque não conseguia pagar, continuei
os estudos em casa. Trabalhava e estudava. Conseguir concluir o curso é ser a
primeira pessoa da minha família a concluir a faculdade”, diz.
A
advogada Claudiceia Nascimento Rocha, que representa 31 estudantes de medicina,
considera os aumentos abusivos, pois não levaram em consideração a renda
familiar dos estudantes. “O Fies foi criado para facilitar que alunos de baixa
renda conseguissem se formar em cursos caros, aumentando a quantidade de
médicos, de engenheiros, a intenção foi essa. Só que hoje, o programa está
totalmente desfigurado do projeto inicial porque os alunos não têm mais como
arcar com a coparticipação”, diz.
Os
processos envolvem tanto a Estácio, que segundo a advogada não está sendo
transparente em relação aos valores, quanto a própria Caixa e o Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia ligada ao Ministério da
Educação (MEC), responsável pela gestão do programa.
A
intenção, segundo a advogada, é que os alunos possam concluir os estudos e que
sejam cobrados valores factíveis. “Os alunos hoje não vão se formar e vão ter
uma dívida antecipada do Fies que não conseguirão pagar”, defende.
Criado
em 1999, o Fies oferece financiamento a estudantes de baixa renda em
instituições particulares de ensino a condições mais favoráveis que as de mercado.
O programa, que chegou a firmar, em 2014, mais de 732 mil contratos, sofreu,
desde 2015, uma série de mudanças e enxugamentos. Em 2019, foram cerca de 67
mil ingressantes no ensino superior pelo Fies, segundo o último Censo da
Educação Superior.
Um
dos principais motivos para as mudanças nas regras do Fies, de acordo com
gestões anteriores do MEC, foi a alta inadimplência, ou seja, estudantes que
contratam o financiamento e não quitam as dívidas após formados. O percentual
de inadimplência registrado pelo programa chegou a atingir mais de 40%, de
acordo com dados do MEC de 2018.
No
final de 2017, foi lançado o Novo Fies, que passou a dividir o programa em diferentes
modalidades e começou a ser operado em 2018. Os estudantes passaram a
contribuir mais, ainda durante os cursos, com uma coparticipação, para evitar
prejuízos posteriores aos cofres públicos.
O
chamado Fies juro zero, financiado pelo governo federal, é voltado para alunos
cuja renda familiar bruta mensal por pessoa não ultrapasse três salários
mínimos. Os estudantes entrevistados são beneficiados por essa modalidade. O
percentual de financiamento é definido de acordo com o comprometimento da renda
familiar e os valores cobrados pela instituição de ensino superior. O Novo Fies
tem também um teto de financiamento, que é de cerca de R$ 43 mil por semestre,
que corresponde a mais ou menos R$ 7 mil por mês.
Hoje,
o estudante beneficiado precisa pagar, mensalmente, o valor da coparticipação,
que corresponde à parcela dos encargos educacionais não financiada, diretamente
ao agente financeiro, ou seja, à Caixa. Se um estudante obtém, por exemplo, um
financiamento de 90%, precisa pagar 10% da mensalidade ainda durante o curso.
Caso o preço do curso exceda o limite de financiamento do Fies, cabe ao
estudante pagar também essa diferença.
Segundo
a Estácio, o aumento do valor pago pelos estudantes de medicina vem dessa
diferença entre o teto do Fies e a mensalidade do curso e não há, por parte da
instituição, cobranças abusivas.
Procurada
pela Agência Brasil, a Estácio diz que, até 2019, a instituição, que era a
interlocutora financeira, cobrava um valor de semestralidade para os alunos
fies inferior ao praticado para os demais estudantes do curso e limitado ao
teto estabelecido pelo programa de financiamento, que é de cerca de R$ 43 mil.
Os beneficiados pelo Fies pagavam somente o valor não financiado por mês. “Era
uma liberalidade da instituição precificar sua semestralidade de forma a
contribuir para que seus alunos Fies conseguissem manter os seus estudos. Esta
prática não é comum nos cursos de medicina”, diz, em nota.
A
Estácio afirma que, a partir do primeiro semestre de 2020, devido a uma mudança
no sistema aplicado pelo Fies, a Caixa passou a ser a responsável pela cobrança
financeira do aluno. Agora, quem emite o boleto é o banco e não mais a
instituição de ensino. Com isso, começou a ser cobrado o valor praticado para
os demais alunos de cerca de R$ 60 mil por semestre.
“Os
boletos passaram a ser emitidos pelo banco, considerando a faixa real da
semestralidade praticada pela IES [Instituições de Ensino Superior] para todos
os seus alunos de medicina, ocasionando a diferença de valor citada. É
importante lembrar que o estudante de medicina tem ciência dos valores ao
aditar o contrato com o Fies no começo de cada período”.
A
universidade afirma ainda que está avaliando os casos dessa natureza e estudando
soluções que visam amparar os estudantes nos próximos ciclos.
Para
o diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior
(Abmes), Sólon Caldas, o programa está ficando cada vez mais inviável tanto
para novos alunos quanto para os que já estão matriculados. Segundo ele, os
casos dos estudantes de medicina não são isolados.
Na
avaliação de Caldas, as mudanças no Fies fizeram com que o programa perdesse o
caráter social, que possibilitava o ingresso de estudantes das classes C, D e E
no ensino superior, e passasse a ter um caráter financeiro. O diretor executivo
da Abmes diz que, quando as mudanças estavam sendo discutidas no Congresso
Nacional, as instituições alertaram para problemas futuros como uma maior dificuldade
dos estudantes em pagarem os encargos, o que está ocorrendo agora.
Segundo
Caldas, o programa deixou de ser vantajoso para os alunos. “Os estudantes
preferem ter uma bolsa de estudos de 30%, 40% [ofertada pela própria
instituição] do que contratar o financiamento estudantil”, diz. No caso dos
cursos de medicina, que são mais caros e concorridos que os demais, ele explica
que, geralmente, não há oferta de bolsas e os estudantes acabam recorrendo ao
financiamento.
A
questão do endividamento e da evasão dos alunos é uma preocupação das
instituições de ensino particulares que detêm hoje pouco mais de 75% de todas
as matrículas do ensino superior do país.
No
ano passado, entidades representantes das instituições particulares de ensino
assinaram um ofício encaminhado ao governo federal chamando atenção para “o
extremo risco de evasão de estudantes, especialmente nos cursos da área da
saúde, com um reflexo prejudicial não só em toda economia, mas também
diretamente no enfrentamento da própria pandemia no âmbito das ações
estratégicas do governo federal”.
Segundo
o documento, a crise provocada pela pandemia da covid-19 “está atingindo
duramente os estudantes de menor renda matriculados no ensino superior
particular onde juntos eles representam 65% do total dos alunos, ou seja, cerca
de 4,142 milhões de estudantes pertencentes às classes C, D, E”.
Caldas
explica que o pedido é por um Fies Emergencial que cubra até 100% da
mensalidade - o que não é mais praticado pelo Fies - de acordo com as
necessidades de cada estudante. “A gente pediu muito ao governo, sobretudo na
pandemia, que pudesse oferecer um Fies Emergencial para socorrer vários alunos
que não estão conseguindo se manter matriculados nem ingressar no ensino
superior”, diz.
Procurado,
o FNDE disse que iniciou um estudo para avaliação das mensalidades dos cursos
de medicina, uma vez que recebeu um elevado número de demandas, em especial, de
estudantes da Estácio.
Sobre
possíveis mudanças para que o programa se torne mais viável a alunos carentes,
o FNDE diz que eventuais distorções no fies “são discutidos entre MEC, FNDE e
CG-FIES [Comitê Gestor do Fies] de forma que o programa contribua cada vez mais
para o acesso e permanência dos estudantes no ensino superior que não podem arcar
com os encargos educacionais, alinhado com o previsto no Plano Nacional de
Educação”. (ABr)
Quinta-feira,
1º de julho, 2021 ás 12:40