A
íntegra da reunião do conselho de ministros de Jair Bolsonaro revelada nesta
sexta-feira por ordem do decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello,
expôs como nunca o modus operandi do Governo ultradireitista e desmontou a
versão do presidente de que ele jamais havia cobrado mudanças na estrutura de
segurança, Polícia Federal incluída, para proteger seus familiares. Nas imagens,
Bolsonaro aparece não apenas ameaçando trocar “ministro” caso não fosse
atendido na missão de preservar seus parentes de “sacanagens” —ele mira na
direção do então ministro da Justiça, Sergio Moro no exato momento—, como fala
também da necessidade de proteger “amigos”. O Planalto vinha repetindo que o
presidente, na reunião, se referia à segurança pessoal de seus familiares, que
cabe ao GSI (Gabinete Segurança Institucional), e não a policiais federais. A
menção aos amigos, porém, complica ainda mais a linha de defesa de Bolsonaro no
inquérito que apura se ele tentou interferir na PF, uma vez que o GSI não teria
como se envolver na proteção de quem não seja da sua família.
De
acordo com juristas ouvidos pelo EL PAÍS, o vídeo corrobora a tese de Moro de
que houve intenção de intervir na corporação policial, e aponta para ao menos
dois crimes: advocacia administrativa e prevaricação. O primeiro é um crime
previsto no Código Penal, que é patrocinar, direta ou indiretamente, interesse
privado perante a administração pública. Já a prevaricação diz respeito a ações
ou omissões de funcionário público para atender objetivo de terceiros.
“O
vídeo traz uma fala bastante clara do presidente dizendo que não mediria
esforços para interferir em estrutura governamental —no caso, a Polícia
Federal— para proteger familiares e amigos. Isso corrobora a versão do
ex-ministro Sérgio Moro”, diz Eloísa Machado, professora de direito
constitucional na FGV Direito de São Paulo. “Não podemos esquecer que, de fato,
o presidente promoveu mudança na Polícia Federal, indicando pessoa muito
próxima da família e que depoimentos do inquérito confirmam também essa
versão”, explica Machado. “O vídeo derruba a justificativa do Bolsonaro de que
ele se referia à segurança do GSI, e não à PF. Ele fala expressamente em ‘foder
amigos meus’, e amigo de presidente não tem segurança do GSI. Só pode ser a
PF”, concorda Rafael Mafei, da USP.
Um
jurista próximo à Procuradoria Geral da República, avalia que o vídeo é muito
ruim do ponto de vista jurídico para o presidente Bolsonaro. “Ele demonstra
muita preocupação. Ele quer o tempo todo puxar esse assunto. Ele avisa aos
ministros o tempo todo que precisa deles. Aquela reunião foi para o Moro”,
acredita. Ele destaca que o presidente falou que contava com “inteligência
particular”, e que a PF não informava nada. “Não tinha nada a ver com
segurança, ele criticou a PF. Mesmo não sendo assunto, ele falava, e mudava o
assunto”, explica ele.
A
pressão sobre Moro ficou destacada em vários momentos da reunião. Em um deles,
Bolsonaro disse que o ministro deveria se manifestar sobre a prisão de pessoas
que furavam a quarentena para conter os contágios do novo coronavírus. “Tem que
falar, pô! Vai ficar quieto até́ quando? Ou eu tenho que continuar me expondo?
Tem que falar, botar pra fora, esculachar! ”. Em outra ocasião, voltou ao tema
da “interferência” e avisou seus ministros de que iria interferir em suas
pastas se fosse preciso. Reclamou que a Polícia Federal não passava informações
ao Planalto. “Eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção”.
E prosseguiu: “Eu não posso ser surpreendido com notícias. Eu tenho a PF que não
me dá informações. Eu tenho as... as inteligências das Forças Armadas que não
tenho informações. ABIN tem os seus problemas, tenho algumas informações”.
Depois,
em entrevista à Jovem Pan após a divulgação do vídeo, o presidente voltou a
reforçar a ideia de que exigia de Moro espécie de proteção via PF. “O tempo
todo vivendo sob tensão, possibilidade de busca e apreensão na casa de filho
meu, onde provas seriam plantadas. Levantei isso, graças a Deus tenho amigos
policiais civis e policiais militares do Rio de Janeiro, que isso tava sendo
armado pra cima de mim”, disse Bolsonaro. “Moro, eu não quero que me blinde,
mas você tem a missão de não deixar eu ser chantageado”, lembrou.
O
conteúdo do vídeo agora será analisado pela Procuradoria Geral da República
—que também terá e mãos uma série de depoimentos e as novas acusações feitas
pelo ex-aliado de Bolsonaro Paulo Marinho. “Certamente esse vídeo ajuda a
compor o acervo probatório indiciário de crimes”, diz Eloísa Machado. A pressão
agora recai sobre Augusto Aras, uma vez que ele pode acusar formalmente o
presidente de crime. “Com certeza há substância para abrir um pedido de afastamento.
Se vai abrir ou não é outra coisa. Mas isto é muito mais que o Fiat Elba que
afastou o presidente [Fernando] Collor e muito mais que a pedalada fiscal da
presidenta Dilma [Rousseff]”, diz o jurista próximo à PGR. Machado, da FGV,
concorda. “São crimes comuns, que também geram afastamento e perda do cargo,
caso aconteça a condenação”, conclui.
Para
o advogado Marco Aurélio de Carvalho, o procurador-geral Augusto Aras, tem a
obrigação de apontar o crime de prevaricação do presidente diante do conteúdo
do vídeo, ou ele mesmo pode ser acusado de prevaricação. “Essa tentativa de
interferência se enquadra plenamente no artigo 85 da Constituição Federal e é
suficiente para dar ensejo, entre outras, a pedido de cassação do presidente”,
diz o advogado Cristiano Vilela, da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos
Advogados do Brasil em São Paulo.
A
grande pergunta é como Aras, indicado por Bolsonaro em setembro de 2019 como
alguém “alinhado” ao Planalto, reagirá. Se decidir pela denúncia contra Bolsonaro,
ela ainda precisará dos votos dois terços dos deputados para virar uma ação
penal e, assim, afastar o presidente do Planalto. Para tentar prever o quanto
de pressão o procurador-geral e o Congresso terão na matéria, uma variável é
quanto de desgaste as imagens, cheias de palavrões e vulgaridades, trarão para
o apoio popular de Bolsonaro, já afetado pela crise do coronavírus. Rafael
Mafei, da USP, é cético: “O vídeo alimenta a base de Bolsonaro”.
Em
sua defesa, o presidente disse que considerou a divulgação do vídeo como
positiva. “Até que foi boa. Cada um pense, interprete da maneira que quiser
esse vídeo, mas é a maneira que eu tenho de ser. E vou continuar sendo assim
porque antes da eleição eu era assim. Como militar eu era assim”, afirmou em
entrevista à rádio Jovem Pan. Ainda tratou as revelações de Moro como falsas.
“É mais um tiro n’água, mais uma farsa como tantas outras que eu acompanho em
minha vida”.
O
escritor auto exilado nos Estados Unidos e ideólogo do bolsonarismo, Olavo de
Carvalho, concordou com a ideia de as imagens mostram um presidente
“autêntico”: “Ouvi dizer que o Moro e o Celso de Mello estavam escondendo um
vídeo do Bolsonaro, para depois exibir e dizer: ‘Ah, vamos mostrar ao povo quem
é o Bolsonaro’. Pois mostraram, Bolsonaro é o presidente que todos os
brasileiros quiseram e querem. É o presidente que não suporta ver uma elite
armada oprimindo um povo desarmado. ”
Ao
citar “povo desarmado”, Carvalho se referia ao trecho da reunião em que Bolsonaro
falou abertamente que pretende armar a população. Um dos intuitos declarados
foi o de intimidar prefeitos que decretaram quarentena durante a pandemia de
coronavírus. "O que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa,
que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer
pra impor uma ditadura aqui!”.
As
imagens ainda revelaram o plano do ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) de
se aproveitar da crise sanitária para alterar uma série de regras de proteção
ambiental, mostram Damares Alves (Direitos Humanos) ameaçando governadores de
prisão e escancaram a conduta do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que
ameaçou autoridades e ministros do Supremo Tribunal Federal. “Eu, por mim,
botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”, disse Weintraub. O
ministro da Educação é o que está mais próximo de se complicar por causa do
vídeo. Na decisão que liberou a íntegra das imagens, Celso de Mello apontou
“indício de crimes contra a honra” do Supremo.
No
meio político, a reação foi imediata. A oposição, que não tem maioria no
Congresso e ainda não convenceu o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a por em
andamento um processo de impeachment, não poupou indignação: “Repleto de
crimes, ameaças à democracia, quebras de decoro e de falta de ética para gerir
uma nação. São inaptos, mas também são abjetos. Bolsonaro não pode continuar a
frente da presidência da República! Tem que cair pelo bem do país”, escreveu o
senador Randolfe Rodrigues (REDE).
A
antiga líder do Governo no Congresso, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP),
disse que o Ministério Público não pode mais segurar qualquer denúncia contra
Bolsonaro. “As provas são cabais e podem embasar tanto um processo de
impeachment quanto de interdição. Bolsonaro conseguiu dar munição aos dois. É
um mito!”, ironizou.
Na
reunião, enquanto criticava a atuação de prefeitos na pandemia de coronavírus,
Bolsonaro chegou a defender que "o povo se arme". No dia seguinte, o
governo publicou uma portaria elevando a quantidade de munição que civis com
posse de arma autorizada poderia comprar.
"Como
é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa.
Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se
arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma
ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um
prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa.
Se tivesse armado, ia pra rua", disse o presidente.
Em
outro momento da reunião, ele cobra fidelidade dos ministros a suas bandeiras,
ao se dirigir à ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares
Alves.
"Quem
não aceitar a minha, as minhas bandeiras, Damares: família, Deus, Brasil,
armamento, liberdade de expressão, livre mercado. Quem não aceitar isso, está
no governo errado", afirmou Bolsonaro.
Vídeo
não deve precipitar impeachment
Diante
dessa expectativa de que o vídeo anime os apoiadores e desagrade os que já não
apoiam o governo, os analistas ouvidos pela reportagem não acreditam que a
divulgação do vídeo possa aumentar a pressão para que o presidente da Câmara,
Rodrigo Maia, inicie um processo de impeachment contra Bolsonaro.
Já
há mais de 30 pedidos apresentados nesse sentido, mas Maia têm dito que o
momento é de o Congresso focar no enfrentamento à pandemia.
Para
Antonio Lavareda, o andamento de um processo de impeachment dependeria de
manifestações nas ruas pressionando o Congresso, o que é inviável devido às
medidas de isolamento social para conter o coronavírus. Da mesma forma, ele
acredita que a falta de mobilizações do tipo também reduz o incentivo para que
Augusto Aras apresente uma denúncia contra Bolsonaro.
"Ao
mesmo tempo que a pandemia prejudica o presidente, por causa da crise econômica
e da avaliação ruim sobre a resposta do governo ao coronavírus, ela também vai
empurrando pra frente (o governo) e inviabilizando qualquer desfecho mais
rápido da crise política", afirma.
Para
Carlos Melo, do Insper, o que deve repercutir de forma mais negativa do
conteúdo do vídeo é ausência de uma discussão séria sobre medidas do governo
para conter a pandemia do coronavírus. No dia da reunião, o Brasil registrava
quase 3 mil mortes e mais de 45 mil pessoas contaminadas. Em um mês, já são
mais de 330 mil casos da doença e mais de 20 mil mortes.
"É
o mais sério que pode ser explorado politicamente porque isso mexe com a vida
das pessoas. A pandemia é o grande tema mundial, o mundo está discutindo o que
fazer, e eles estão (na reunião ministerial) focados na defesa do
governo", observa o professor.
*BBC
Brasil
Sexta-feira,
22 de maio, 2020 ás 10:00