No
começo dos anos 1990, na Itália, um grupo de magistrados milaneses (o mais
popular foi Antonio di Pietro) tentou acabar com os esquemas de corrupção
(antigos e tradicionais) que ligavam empresários, financistas e políticos.
Esse
sistema viciado enchia os bolsos dos políticos (pessoas físicas) e financiava
os partidos com comissões que as empresas pagavam para ganhar contratos
públicos.
Anos
antes, Sandro Pertini, presidente da República (honesto), declarara que um
político deveria sempre ter as mãos limpas ("le mani pulite"). A
expressão ficou e voltou em 1992, para batizar a "operação" dos
magistrados milaneses.
Naquela
década, eu vivia entre o Brasil e os EUA, mas visitava regularmente meus pais e
meu irmão em Milão —por isso mesmo, minhas impressões daqueles anos são
sobretudo o reflexo dos anseios e dos medos de meus familiares, que estavam lá,
na Itália.
Já
nos anos 1980 e antes (pela podridão do "milagre italiano", que
reconstruiu o país depois da Segunda Guerra Mundial), havia uma tremenda
desconfiança dos italianos diante da política tradicional.
Salvavam-se
só os comunistas. Mas isso talvez fosse uma ilusão de óptica produzida pela
minha própria história de militância. Ou pelo fato de que os comunistas ficaram
quase sempre longe do poder executivo nacional.
O
fato é que, para o italiano médio, qualquer governo roubava e roubaria. Os
brasileiros não pensariam (não pensam) muito diferente: o grito "Roma
ladra" poderia facilmente ser traduzido, ainda hoje, como "Brasília
ladra".
A
partir de "Mani Pulite", em 1992, ganharam espaço um movimento
antimáfia e anticorrupção (fato curioso: ele se chamava "La Rete", a
rede), e um movimento de direita do qual Bolsonaro, Feliciano e companhia
gostariam (a Liga Norte).
De
qualquer forma, a opinião pública estava, forte e unida, com o Ministério
Público e com os juízes.
Pipocavam
escritas nos muros de Milão: "Di Pietro, não volte atrás! Não
perdoe!". De uma, em particular, me lembro bem —a que eu li estava num
muro de tijolos, talvez na parte externa da Universidade de Milão: "Di
Pietro, facci sognare" (Di Pietro, faça a gente sonhar).
Era
isso mesmo, os italianos sabiam que aquilo seria, ao menos em parte, um sonho.
Os
inimigos naturais de "Mani Pulite" se oporiam de todas as maneiras
possíveis. De 1992 a 1996, políticos tradicionais e empresários desonestos
lutaram para sujar os magistrados milaneses —foi sem muito efeito. No meio de
1992, os juízes Giovanni Falcone e Paulo Borsellino foram assassinados pela
Máfia (a relação entre a Máfia e a classe política era o pano de fundo sombrio
da corrupção).
Mesmo
assim, aos poucos, na Itália, o jeito de fazer política mudou para sempre.
Sumiram os partidos que tinham se tornado instituições fisiológicas. Imagine o
que isso poderia significar hoje no Brasil.
A
política italiana de hoje (a própria figura do primeiro-ministro Renzi) seria
impensável sem "Mani Pulite". E ela é infinitamente melhor do que ela
era no passado.
Há
quem diga, aqui no Brasil, que o resultado de "Mani Pulite" foi
Berlusconi. Isso é historicamente falso: ao contrário, Berlusconi se instalou
no poder por uma década a partir de 2001, justamente quando os italianos se
cansaram de "Mani Pulite".
Porque,
de fato, eles se cansaram. De quê? Do fedor da lama? Do clima paranoico? Será
que o mesmo cansaço nos espreita?
Não
sei, mas o fato é que, em geral, quando a corrupção é o sistema de governo, é
porque ela é também a forma dominante da vida social, pública e privada.
Você
dá R$ 20 a um colega para que ele faça seu dever de casa. Isso é possível porque
os políticos, lá em cima, são corruptos? Ou é o contrário: os políticos, lá em
cima, se permitem ser corruptos porque sabem que a corrupção é a regra aqui em
baixo, na nossa vida cotidiana?
O
cidadão médio vive de pequenas corrupções: venda e compra de pontos na
carteira, notas fiscais não emitidas, colas numa prova, pequenas sonegações e
fraudes...
Ele
pede transparência e honestidade até se dar conta de que muitas de suas ações
são filhas da mesma confusão que ele denuncia no político: uma incapacidade de
distinguir os interesses públicos dos interesses privados.
Não
basta que uma boa faxina seja pelas calçadas e pelas praças; ela precisa
acontecer em casa. Isso seria uma verdadeira mudança cultural...
Vou
continuar sobre público e privado.
(Contardo
Calligaris)
Domingo,
03 de abril, 2016
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