Responsáveis
por fiscalizar e julgar o uso de recursos públicos, 80% dos integrantes de
tribunais de contas chegaram aos cargos após exercer mandatos eletivos ou altas
funções em governos. O levantamento é da ONG Transparência Brasil, que atribui
à “forte politização” dessas cortes a ineficiência no controle das atividades
de governadores, prefeitos, secretários e outros gestores públicos.
O
estudo também aponta que quase um quarto dos conselheiros responde a processos
ou já foi condenado na Justiça por suposto envolvimento em ilegalidades como
corrupção, improbidade administrativa e peculato (desvio de recursos públicos).
Na
conta não estão os alvos da Operação O Quinto do Ouro, da Polícia Federal, que,
na semana passada, prendeu cinco dos sete conselheiros do Tribunal de Contas do
Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ). A suspeita é de cobrança de propina de
empresas e políticos em troca de favorecimento em julgamentos.
A
operação reacendeu a discussão sobre os critérios de nomeação dessas
autoridades e sobre a criação de um conselho para controlar sua atuação, ainda
inexistente. “O caso do TCE-RJ assusta por sua dimensão, mas não é fato isolado”,
afirma o procurador de contas Júlio Marcelo de Oliveira, que atua perante o
Tribunal de Contas da União (TCU) e preside a Associação Nacional do Ministério
Público de Contas (Ampcon).
Ele
defende mudança na Constituição com o objetivo de acabar com indicações
políticas para os órgãos. “Nossa história mostra que a indicação política
favorece a captura do órgão de controle pelo grupo político dominante, o que
produz órgãos de controle lenientes, omissos e menos rigorosos com os
governantes integrantes desse grupo, sem falar no risco de corrupção”, afirmou
Oliveira, autor do parecer que apontou as pedaladas fiscais nas contas do
governo de Dilma Rousseff e que fundamentou o pedido de impeachment da petista.
Perfil
O
estudo da Transparência Brasil – feito em 2014 e atualizado no ano passado –
analisou o perfil de 233 integrantes das cortes de contas, entre eles os nove
ministros do Tribunal de Contas da União (TCU). Quase a metade (107) foi
deputado estadual, 91 ocuparam cadeiras de secretários estaduais ou municipais,
48 exerceram mandatos como vereadores e 22 chefiaram prefeituras. Em ao menos
59 casos, os nomeados são parentes de políticos, alguns deles do próprio
governador que os nomeou.
A
principal razão para a politização das cortes é o mecanismo de preenchimento
desses cargos, previsto na Constituição de 1988. Conforme a lei, nos TCEs,
todos os sete integrantes são nomeados pelo governador. Desse total, um é de
livre escolha dele. Outros quatro são indicados pela Assembleia Legislativa. Só
os dois restantes têm de vir do quadro técnico dos tribunais, sendo um do corpo
de auditores e o outro, oriundo do Ministério Público de Contas.
“Na
prática, a formação dos colegiados dá muito poder ao Executivo e ao
Legislativo, que, em geral, estão alinhados”, afirmou a coordenadora de
Projetos da Transparência Brasil, Juliana Sakai, uma das responsáveis pela
pesquisa. Ela disse que a indicação para os tribunais é cobiçada pelos
políticos por causa dos inúmeros privilégios dos cargos – que são vitalícios e
incluem remuneração de desembargador, prerrogativas de magistrado e foro
perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Eles ganham uma ótima
aposentadoria política e têm mais do que agradecer aos que apadrinharam a
indicação.”
Segundo
a Transparência Brasil, também são frágeis os mecanismos para evitar que
autoridades envolvidas em crimes assumam os cargos. A Constituição estabelece,
como pré-requisito, que os candidatos devem ter, além de notórios conhecimentos
para o exercício das funções, idoneidade moral e reputação ilibada, critérios
não regulamentados e que acabam sendo interpretados livremente pelos
governantes.
A
Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), que
representa os conselheiros, admite que o atual sistema de indicações favorece a
ingerência política. O presidente da entidade, Valdecir Fernandes Pascoal,
também defende uma mudança na legislação para que a maioria dos integrantes
passe e ser, obrigatoriamente, dos quadros técnicos das instituições. Na semana
passada, ele apresentou ao Congresso uma proposta de emenda à Constituição que
institui um conselho para fiscalizar a atuação dessas autoridades.
“Está
mais do que provado. Esse modelo (de indicações) não inspira confiança da
sociedade. Da mesma forma que tem gente boa que vem da política, tem outros que
não conseguem se blindar. A função de julgar contas é técnica”, afirmou
Pascoal.
Em
raras situações, políticos suspeitos de corrupção foram barrados. É o caso do
ex-senador Gim Argello (PTB-DF), que, em 2014, não conseguiu vaga no Tribunal
de Contas da União (TCU) após uma campanha de auditores e procuradores que o
fez desistir. No ano passado, Argello foi preso pela Operação Lava Jato e
condenado por receber propinas de empreiteiras. Ele nega os crimes.
Dos
233 integrantes de tribunais no País, 53 são alvo de 104 acusações na Justiça
ou nas próprias cortes de contas.
Desde
2007, ao menos dez foram afastados de seus cargos, entre eles Robson Marinho,
do TCE de São Paulo, suspeito de receber propina de empresas integrantes do
cartel dos trens. Ele tem negado envolvimento no suposto esquema. Procurado,
não se manifestou.
No
Amapá, quatro integrantes do tribunal de contas foram obrigados a deixar os
cargos em 2012, após a Operação Mãos Limpas, da PF, apontar suposto
envolvimento num esquema que desviava recursos de órgãos públicos. Com a
aposentadoria de um deles, em 2015, o então governador Waldez Góes (PDT)
indicou para a vaga o ex-deputado Miguel Houat, o Miguel JK (PSDB), alvo de
ações na Justiça.
O
tribunal chegou a negar posse ao conselheiro e o Ministério Público tentou
barrar sua nomeação na Justiça, mas uma decisão do Supremo Tribunal Federal
(STF) assegurou sua entrada na corte. A reportagem procurou o conselheiro na
sexta-feira, mas, segundo sua assessoria, ele estava em viagem e não se
manifestaria.
Compra de vaga
A
PFjá apontou casos até de compra de vaga em tribunal. A Operação Ararath
indicou que o conselheiro Sérgio Ricardo de Almeida, de Mato Grosso, pagou R$ 4
milhões ao antecessor no cargo para assumir a cadeira na corte. Ele foi
afastado em janeiro por uma decisão judicial.
O
TCE-MT informou que o conselheiro afastado não se manifestaria. Em
pronunciamentos anteriores, Almeida negou ter praticado atos ilícitos.
TCU
A
assessoria de imprensa do Tribunal de Contas da União afirma que as decisões
dos ministros são “eminentemente técnicas”. Segundo o tribunal, a forma como
está estruturado o processo decisório “repele qualquer ingerência externa ou
interna sobre o exame das matérias”.
“Não
há espaço para que um ator qualquer possa ou queira interferir em tantas
esferas técnicas e afetar inúmeras consciências de terceiros ao mesmo tempo”,
afirma o TCU, referindo-se ao fato de que quadros técnicos e integrantes do
Ministério Público acompanham todos os processos. (AE)
Domingo,
2 de Abril de 2017 ás 12hs00